terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Quarenta anos depois, uma pergunta...

O Ato Institucional nº 5 foi revogado em 1978 porque não era mais necessário. O que precisou ser instituído pela ditadura militar talvez pudesse sobreviver sem ela

por Marcos Silva

Foi numa festa familiar que eu soube do AI-5. Um dos presentes veio falar sobre a leitura do documento na televisão. Dava medo e pensei que era mais um passo da ditadura em vigor.O Brasil já era uma ditadura desde 1o de abril de 1964. Tudo de ruim que qualquer ditadura pratica se tornara corriqueiro. O problema, difícil de acreditar naquela hora, era que o ruim pudesse piorar. Piorou!É importante estar atento à argumentação justificadora do documento. O AI-5 inicia em nome do Presidente da República, evidenciando que essa república tem um agente que decide (o Presidente), consultando – mas sem depender de suas decisões – o Conselho de Segurança Nacional. Temos, então, a república do Presidente, que ouve aquele Conselho. A “coisa do povo” foi transformada em coisa do Presidente. O nome é república, mas a prática é de despotismo. Quem tem a força é o Presidente, força que emana dele mesmo ou, quando muito, da autodenominada Revolução de 1964.Os outros poderes constitucionais clássicos – Legislativo e Judiciário – somem, num primeiro momento, do AI-5, para reaparecerem submissos, como impotências. O Presidente da república pode decretar o recesso parlamentar a qualquer momento e os senadores, deputados e vereadores podem ser cassados. O Judiciário é brindado com a perda da vitaliciedade no cargo (juízes também cassáveis), direito que significava alguma garantia de independência; e é suspenso o habeas corpus – alguma garantia de vida para os cidadãos. O Legislativo também é chantageado financeiramente com a redução dos salários à base mínima, em caso de recesso. O Judiciário foi tratado como inexistente: “Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos” (Art. 11). Fora do AI-5, não há solução. O Presidente não pode ser contrariado.
Mas nenhum poder é de um só; não se abole a sociedade tão facilmente; existiam grupos sociais beneficiados pela ditadura como um todo, e pelo AI-5 em particular; e grupos prejudicados por ambos.Não é distração nem imperícia do texto: os redatores e signatários do AI-5 quiseram mesmo transmitir esses significados de extrema centralização, extrema insegurança, extrema arbitrariedade. O ditador Costa e Silva não era onipotente, mas se apresentava como tal. O AI-5 designava o que quisesse como fora-da-lei, numa espécie de “A Lei sou eu”. Assustador porque era para assustar. E, ao mesmo tempo, esclarecedor: o que é a lei numa ditadura? O AI-5 respondia: um punhado de nada.O AI-5 vigorou até 31 de dezembro de 1978. Desde meados da década de 70, movimentos sociais, votações crescentes na oposição tolerada, descrédito do ”milagre econômico” e grandes greves a partir de 1978 demonstravam que aquele documento já não dava conta de exercer o controle absoluto a que se propunha. E o governo Geisel se esforçou para aparecer como autor do desmonte da ditadura para garantir a continuidade de muitos de seus personagens e traços – último estertor de um AI-5 que não mais ousava dizer seu nome.O fim do AI-5, instrumento de radical arbítrio, é motivo de alívio. Falta indagar sobre a possibilidade de que ele tenha sido extinto por falta de necessidade para continuar a existir: o que precisara ser instituído pela ditadura podia sobreviver sem ela.

Marcos Silva é professor do departamento de história da FFLCH - USP

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